Fonte: INESC
11/03/2019 - 09h55 (atualizado em 11
de março de 2019) | Tempo estimado de leitura: 6
Por Nathalie Beghin, coordenadora da
assessoria política do Inesc
Há um elemento central na nossa
relação com a comida: os papeis atribuídos a homens e mulheres. Precisamos
avançar na conquista por mais equidade de gênero na segurança alimentar e
nutricional, mas a institucionalidade que tínhamos para isso foi destruída.
O
que comemos e de que forma comemos depende de como os alimentos são produzidos
e distribuídos. Depende também da renda das famílias, dos seus hábitos
alimentares, de suas culturas e de políticas públicas de alimentação e
nutrição, entre outros fatores. Há, contudo, um elemento central na nossa
relação com a comida: os papeis atribuídos a homens e mulheres. Nossas
sociedades estão fundadas em uma estrutura dicotômica e machista que, além de
separar a esfera privada da pública, hierarquiza e distribui papéis sociais
diferenciados para mulheres e homens. Essa assimetria gera uma desigual repartição
de atribuições entre os sexos em todas os âmbitos da vida, de uma maneira
geral, e em relação aos alimentos, mais especificamente. Segundo o IBGE, em 2017,
as mulheres trabalhavam 20,9 horas por semana em afazeres domésticos e no
cuidado de pessoas, quase o dobro das 10,8 horas dedicadas pelos homens. E
mais: ainda de acordo com o IBGE, 95,6% das mulheres com 14 anos ou mais
utilizavam parte deste tempo para preparar ou servir alimentos. Entre os
homens, esse percentual é de apenas 59,8%.
Os
dados revelam o quanto os estereótipos de gênero ainda reservam às mulheres o
destino de cuidar dos filhos, da casa, da família e das refeições. Alguns
avanços foram obtidos, pois a participação dos homens nos cuidados da família
vem crescendo lentamente em tempos recentes. Contudo, limitam-se a atividades
mais próximas do lazer, como, por exemplo, os almoços de final de semana.
Aparentemente, o mercado vem dando respostas as demandas das mulheres para
diminuir a carga de trabalho na cozinha, disponibilizando produtos e serviços
que exigem menor dedicação. Acontece que essas respostas além de criar novos
problemas acabam reforçando a desigualdade de gênero.
O
mercado de produtos ultraprocessados cresce no mundo, especialmente em países
em desenvolvimento. São alimentos que passaram por técnicas e processamentos
que adicionam alta quantidade de sal, açúcar, gorduras, realçadores de sabor e
texturizantes; as vezes podem conter vitaminas e minerais sintéticos. São
produtos pré-prontos ou prontos para o consumo, encontrados em todas as
prateleiras, como os salgadinhos, diversos tipos de pães e biscoitos doces e
salgados, produtos assados, fritos e congelados. Se a principio parecem
facilitar a vida das pessoas, e em especial das mulheres, são na realidade um
verdadeiro veneno. Estudos de organismos
internacionais e inúmeros estudos nacionais revelam que o
aumento do consumo de ultraprocessados está fortemente correlacionado ao
aumento do sobrepeso e da obesidade que, por sua vez, está na origem de
enfermidades como diabetes, hipertensão e vários tipos de câncer.
Divisão
do trabalho doméstico
No
Brasil, mais da metade da população está com sobrepeso e a obesidade atinge a
20% das pessoas adultas. Temos, pois, um sério problema alimentar que resulta
em doença e morte. E mais uma epidemia do século 21. Mais do que nunca
precisamos resgatar dietas seguras, adequadas e saudáveis. Para isso, faz-se
necessário mudar nossa forma de produzir e consumir alimentos, de modo a
valorizar os alimentos in natura livres de transgênicos e de agrotóxicos e,
assim, ter acesso a produtos diversos e minimamente processados. Contudo, isso
não é suficiente, pois não resolve a desigualdade de gênero. A igualdade entre
homens e mulheres passa necessariamente pela progressiva construção de um
modelo societário, baseado nos princípios da solidariedade, da reciprocidade e
da redistribuição. Passa pela divisão equânime dos trabalhos domésticos e de
cuidados entre homens e mulheres. Nesse lugar, todas e todos teremos direito à
uma alimentação saudável, digna e em sintonia com os hábitos e culturas
alimentares, sem que isso signifique o confinamento das mulheres às
responsabilidades de cuidar da alimentação.
Nesse
8 de março de 2019, não há motivos para celebrar. A institucionalidade que
tínhamos para avançar na conquista por mais equidade de gênero na segurança
alimentar e nutricional foi destruída no primeiro dia do governo Bolsonaro. Com
efeito, não somente foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e
Nutricional (CONSEA) como desapareceu da estrutura federal a Secretaria
Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, antigamente subordinada ao
Ministro do Desenvolvimento Social, atual Ministério da Cidadania. Ademais,
para liderar a Política para as Mulheres foi nomeada uma jovem conservadora,
nada preocupada com essas questões. Felizmente, essa pauta continua viva entre
organizações e movimentos sociais. Continuaremos lutando para garantir que
nossas demandas sejam atendidas graças à pressão popular. Continuaremos
cultivando a justiça de gênero para conquistar a segurança alimentar e
nutricional tendo em mente o que nos diz Chimamanda Adichie “A cultura não faz
as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres
não faz parte da cultura, então temos que mudar nossa cultura”.