Fonte: INESC
Brasil tem cerca de 1,8 milhão de crianças e
adolescentes em situação de trabalho infantil. Enfrentar o problema exige
políticas integradas, com foco na redução das desigualdades sociais e combate à
pobreza. Leia no terceiro texto da parceria Inesc e Armandinho
Tirinha inédita do Armandinho cedida
por Alexandre Beck
É
provável que no dia 12 de junho, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil,
uma criança lhe ofereça flores ou chocolates no bar, e que um adolescente vigie
seu carro enquanto você sai para celebrar o também dia dos namorados. Segundo
a Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios (Pnad Contínua), de 2016, o Brasil tem cerca de 1,8
milhão de crianças e adolescentes (5 a 17 anos) em situação de trabalho
infantil – o que mostra que nós estamos em descumprimento da lei e
naturalizando um problema que deveria ser prioridade absoluta de luta.
A
Constituição Federal de 1988 afirma que é dever da família, da sociedade e do
Estado “assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o
direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à
profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (art.
227).
Assim,
somos todos responsáveis por garantir que a infância e adolescência sejam
resguardadas, assegurando proteção e espaços favoráveis ao seu pleno
desenvolvimento. O não enfrentamento e a não erradicação do trabalho infantil
são crimes. Compreende-se por trabalho infantil toda forma de trabalho
realizado por crianças e adolescentes abaixo de 14 anos. Dos 14 aos 16, é
permitido trabalhar apenas na condição de aprendiz.
Perfil
socioeconômico do trabalho infantil
Historicamente,
o Brasil tem um legado de violências à infância. Desde os tempos de colônia, um
recorte social foi feito, tolerando que crianças indígenas e negras fossem
levadas ao trabalho, escancarando uma estrutura classista vergonhosa. O
trabalho infantil constitui-se como mecanismo de sobrevivência às desigualdades
sociais, ora como alternativa para garantir a renda familiar, ora para alcançar
condições de consumo de itens que se estabelecem como elementos de inclusão
social em determinados grupos, como roupas de marca, celulares e outros.
Essa
realidade, em si, é um indicador latente de que o país falhou em políticas de
inclusão socioeconômicas, pois as crianças e adolescentes hoje em situação de
trabalho infantil são filhos de pais que estiveram na mesma condição, uma
herança de violação à infância e exclusão de direitos.
De
acordo com o Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e
proteção ao Adolescente trabalhador, o perfil socioeconômico das famílias das
crianças e adolescentes, entre 5 a 17 anos, em situação de trabalho infantil,
revela que 49,83% têm rendimento mensal per capita menor que 1/2 salário mínimo
e 27,80% inferior a 1 salário mínimo, o que prova que o trabalho infantil tem
relação direta com a pobreza. Portanto, a partir desses dados, é possível
concluir que 77,63% das crianças e adolescentes em situação de trabalho
infantil são de famílias vulneráveis, com renda per capita inferior a 1 salário
mínimo.
E
se a pobreza no Brasil tem cor, o trabalho infantil também. Segundo dados da
PNAD/IBGE Contínua 2016, entre as crianças e adolescentes em situação de
trabalho infantil, 64,1% são negras. Isso é uma das comprovações da
formação sócio histórica estruturada nas relações de poder racista, classista
que seleciona os corpos, as cores que terão oportunidade de vivenciar a
infância.
“Vai
trabalhar, vagabundo!”
Uma
narrativa assimilada pela cultura do país é que: “é melhor estar trabalhando do
que vagabundando na rua”, o que se apresenta como elemento para justificar o
trabalho infantil. Pois bem, a questão é que essa narrativa se aplica apenas
aos menos favorecidos economicamente, em sua maioria crianças e adolescentes
negras. Tal conduta ignora de forma violenta a condição do corpo infantil e
adolescente, compromete seu pleno desenvolvimento, cria e estabelece mecanismos
contínuos de uma vida de exclusão.
Se
o trabalho enobrece e “dignifica o homem”, no que se refere às crianças, ele
mortifica suas possibilidades de uma vida digna, visto que essa situação
limita, restringe ou até impede o acesso a direitos como saúde, educação,
profissionalização, convivência familiar e comunitária. Ademais, o corpo
infantil e adolescente, se estiver trabalhando, não desfruta de espaço e tempo
oportuno para se desenvolver em suas dimensões “físico, mental, moral,
espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade” (art. 3 ECA).
Crianças
e adolescentes em situação de trabalho infantil pagam um alto preço, tanto com
seus corpos, quanto com suas mentes. Suas capacidades de criar, imaginar,
experienciar e ter perspectivas ficam prejudicadas, rompendo com possibilidades
de construções cognitivas e psicopedagógicas. Essa ruptura impactará esses
sujeitos durante a vida adulta.
Romper
o ciclo das desigualdades para erradicar o trabalho infantil
O
Brasil assumiu o compromisso de erradicar o trabalho infantil até 2025. No que
se refere a nossa legislação, temos leis que colocam a infância e adolescência
na centralidade das políticas públicas e sociais e favorece o respeito às
diversas infâncias e adolescências. No entanto, os retrocessos que estamos
testemunhando ao longo do ano de 2019 impactam essas políticas.
Cortes
nos recursos destinados à educação, assistência social e à fiscalização do
trabalho escravo, são ações que contribuem para a invisibilização das crianças
e adolescentes em situação de trabalho infantil, violando direitos
fundamentais.
Por
que trabalha uma criança? Se a conclusão é que seja para garantir sua
sobrevivência, tem-se aqui a ausência da responsabilidade como sociedade. Há,
portanto, urgência em cumprir a legislação e exigir que a infância seja
prioridade na execução e planejamento do orçamento público. Um esforço sério ao
enfrentamento do trabalho infantil exige uma dinâmica de políticas integradas,
com enfoque na redução das desigualdades sociais e combate à pobreza, visto que
o trabalho infantil segue como uma herança na família de baixa renda. Segue
também lado a lado com a baixa escolaridade.
Cada
criança e adolescente em situação de trabalho infantil é um indicador vivo que
falhamos em assegurar direitos, comprova que o Estado não conseguiu romper com
o ciclo de desigualdades, tão pouco garantiu condições de inclusão desses
sujeitos.
A
infância não pode esperar, ela tem urgência em viver, ocupar cidades, campos,
aldeias, e quilombos, tecer, descobrir e experienciar sua identidade real, que
são o riso, o brincar, o aprender e ensinar, com as cores, o afeto, a
convivência familiar. Ela está em todo lugar nos provocando e nos inspirando a
tecer dias melhores. O futuro da infância não é a vida adulta, o futuro da
infância é o presente, é presença. A nós, cabe a responsabilidade de garantir
a presença de seus direitos de forma a respeitar seu tempo, seu
desenvolvimento. Criança não trabalha!
De
igual modo, cabe atenção e reflexão sobre como nosso país tem concordado com a
criminalização da adolescência, sem, contudo, observar o grupo alvo desse
discurso, pois mesmo o termo adolescente é negado aos adolescentes periféricos,
eles seguem nas narrativas como “de menor”. Adolescência não é crime,
adolescência pede proteção, estímulos, incentivos, educação, cultura, arte,
direito à saúde, à cidade, à sua identidade sociocultural e profissionalização.
Aos
adultos desse país está dada a responsabilidade em monitorar e cobrar pela
efetivação dos direitos das crianças e adolescentes, que não podem esperar. A
eles e elas nenhum direito a menos, proteção integral.
Acesse
AQUI o texto no site do Inesc.