Fonte: INESC
Por Márcia Acioli, assessora política do Inesc
O desafio posto é fazer com que o Estatuto da Criança e do Adolescente se
concretize nas diversas comunidades e contextos, assegurando o
mesmo acesso a
direitos, ainda que as condições sejam múltiplas
Tirinha do Armandinho cedida por Alexandre Beck para publicação no site do Inesc
"A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos
disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar." Mia Couto
Tratar de infância significa falar de um colorido sem fim que cobre o
mundo. Não se trata de um único modo de ser, mas de infinitos, tanto quanto
crianças há sobre a terra. A diversidade é o que caracteriza a natureza humana.
Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA):
Art. 3º A criança e o adolescente gozam de todos os direitos
fundamentais inerentes à pessoa humana, sem prejuízo da proteção integral de
que trata esta Lei, assegurando-se-lhes, por lei ou por outros meios, todas as
oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico,
mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
A infância poética e querida, tal como a conhecemos no mundo moderno,
além de ter sido fruto de uma longa construção histórica e antropológica, não é
– e nunca foi – igual para todas as crianças. Nem todas que habitam um mesmo
território, ou fazem parte da mesma família desfrutam de modo igual de suas
condições de existência.
As desigualdades e a pobreza impulsionam crianças a um amadurecimento
precoce, forjam um lapso da vida subtraindo delas o direito humano de brincar.
O trabalho precoce agride seus corpos e tortura suas mentes. A atividade
laboral as impede de se desenvolver na interação permanente com outras
crianças. O trabalho de crianças representa o esmagamento do direito de serem
protegidas.
Desigualdade na
infância
Há infâncias cujos povos não são reconhecidos. Esta forma de opressão
intenciona provocar o silenciamento ou até o desaparecimento de coletividades.
Sem voz não há plenitude. Crianças expulsas de suas terras e, privadas de seus
territórios, perdem contato com as suas referências e ancestralidades. Corta-se
o fio que as conecta a outras gerações.
Há crianças amadas e outras não queridas, determinando ora preferências,
ora descasos e negligências na própria família ou na escola. Outras são
treinadas para o sucesso e se privam de experiências lúdicas com uma sobrecarga
de compromissos.Crianças de cores diferentes experimentam a vida de formas
diferentes. Privilégios e intolerâncias determinam suas vivências.
Nos discursos institucionais, a infância costuma ser tratada como um
‘vir a ser’ de um futuro distante como se a sua condição presente estivesse
presa ao fardo de se responsabilizar pela construção de um ‘depois feliz’ para
o país e, quiçá, para o mundo. O papel da criança, neste caso, estaria
vinculado unicamente à sua futura participação na vida adulta. Portanto, falar de
infâncias também exige um olhar sobre seus territórios e suas comunidades. Não
há infância sem suas complexas relações familiares, comunitárias e ambientais.
Outra concepção usual de infância a considera propriedade dos adultos
(herança do Código de Menores, lei que antecede o ECA), perspectiva que permite
uma infinidade de violências e de abusos.
Fundamentado na doutrina da Situação Irregular o Código de Menores
permitia às autoridades recolherem crianças que estivessem desprotegidas nas
ruas como se elas mesmas fossem responsáveis pelo próprio abandono. Nesta
concepção o espaço público é hierarquizado e as crianças indesejáveis (negras e
pobres) eram tidas como ‘sujeira’. Ao poder público cabia ‘higienizar’ as ruas
livrando-as dos sujeitos considerados incômodos.
ECA: paradigma da
proteção integral
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90) nasce pelos
movimentos populares para inaugurar uma nova lógica. Pela primeira vez, se
reconhece no Brasil a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. O ECA
nomeia a família, a sociedade e o poder público como responsáveis pela proteção
e pelo desenvolvimento de todas e de cada criança e de cada adolescente. Entre
a universalidade e a particularidade, o ECA acolhe a todas no princípio da
prioridade absoluta.
Em vez de se recolher crianças, o ECA obriga um conjunto de instituições
a promover direitos. O paradigma da Proteção Integral constitui um abraço
simbólico em cada criança por todas as políticas públicas e por toda a
sociedade de tal maneira que, se a família estiver fragilizada e não der conta
de seu papel, outro setor estará presente enquanto o núcleo familiar também é
amparado.
Em tempos de retrocessos e exacerbação das intolerâncias e violências,
crianças e adolescentes são alvos fáceis. O PSL, partido do presidente
Bolsonaro, move uma ação contra os
dispositivos do ECA que impedem a detenção de crianças e adolescentes para
averiguação por motivo de perambulação nas ruas. O objetivo é
ressuscitar a lógica seletiva, elitista e perversa que fundamentava o antigo
Código de Menores. Recolher seria a palavra de ordem, restrição da liberdade,
nada mais.
A liberação de armas de fogo, por exemplo, representa um perigo
objetivo: o de morrer ou ver morrer um familiar. As armas têm uma mira precisa.
Apontam para as cabeças de moradores das favelas, população negra. Não há bala
perdida, há bala que faz vítimas. A bala encontra corpos. Corpos negros com
endereço certo. Estudo do Unicef (2017) revela dados sobre a raça/cor das
vítimas de homicídio no Brasil: 75% dos mortos são negros ou multirraciais, 18%
brancos, 7% das vítimas não possuem raça/cor declarada.
O desafio posto é fazer com que o Estatuto da Criança e do Adolescente
se concretize nas diversas comunidades e contextos, assegurando o mesmo acesso
a direitos, ainda que as condições sejam múltiplas. O importante é que o ECA
garanta a dignidade e o pleno desenvolvimento, respeitadas as diferenças
étnicas, culturais e pessoais, entre outras. Só com a convergência de todas as
políticas públicas, com maior atenção aos que mais necessitam, é possível
assegurar o pleno desenvolvimento e o direito de ser feliz de um conjunto tão
diverso de crianças que compõe o que chamamos de infância.